quinta-feira, dezembro 01, 2005

 

Dois milénios de obscurantismo - O legado árabe

A destruição pelos árabes de uma biblioteca da dimensão da de Alexandria parece pouco plausível se considerarmos que a civilização árabe recriou em Bagdad o ambiente académico de Alexandria, criando infraestruturas apropriadas à livre, cosmopolita e multi-religiosa difusão e desenvolvimento de conhecimento. Aliás, era então praxis muçulmana tolerar as culturas e religiões dos povos conquistados e, ao invés de a aniquilar, os muçulmanos assimilaram a cultura, nomeadamente científica, que encontraram nas regiões conquistadas.

Assim, nos primórdios da civilização árabe (identificada com islâmica) a esmagadora maioria dos matemáticos e sábios «árabes» praticavam outras religiões e escreviam numa língua diferente do árabe. Por exemplo, quando a Arménia foi conquistada cerca de 640 já o geógrafo e matemático Anania de Shirak teria escrito, em arménio, o seu livro sobre aritmética.

Só em 762 o árabe passou a ser a língua oficial de todo o império islâmico pela mão do califa abássida al-Mansur (754-775) que transferiu a capital para a recém-criada Bagdad. Tanto al-Mansur como os califas subsquentes, especialmente o califa Harun ar-Rasid (786-809), promoveram o desenvolvimento das ciências da natureza. No califado deste último Bagdad comecou a ser transformada no epicentro da difusão de conhecimento com a criação de uma importante biblioteca, contendo diversos manuscritos provenientes, entre outros, do império Bizantino. Nessa altura numerosos sábios e tradutores, professando religiões sortidas, e vindos de diversas regiões não apenas do império árabe, reuniam-se em Bagdad, que substituiu Alexandria como centro de saber.

O filho de ar-Rasid, o califa al-Mamum, fundou uma espécie de academia, Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, em cujas funções se incluia a tradução de textos diversos, especialmente gregos e indianos, e que dispunha de um muito bem equipado observatório astronómico

Assim, aquilo a que chamamos matemática árabe não o é de facto mas sim matemática escrita em árabe. Os algarismos ditos árabes correspondem à numeração indiana cuja primeira referência (excluindo o zero) fora da Índia, cerca de 662, se deve a Severus Seboht, originário de Nisibis, Mesopotâmia, que para além de versar sobre matemática escreveu, a partir de fontes gregas, babilónicas e sânscritas, obras de astronomia, de geografia e um tratado sobre o astrolábio.

Mas a Casa da Sabedoria produziu obras originais fundamentais como o primeiro tratado de álgebra (de al-jabr, que significa restauração), Hisab al-jabr w'al-muqabala, da autoria de um dos primeiros matemáticos da Casa da Sabedoria, Abu Abdullah Mohammed ben Musa al-Khwarizmi de que existem várias traduções em latim datadas do século XII. Aliás, o termo algoritmo deriva de uma corrupção latina do nome do matemático, inscrita numa obra do século XIII, sem título, que se encontra na Biblioteca da Universidade de Cambridge, que se inicia com as palavras Dixit Algorismi, ou Algorismi (al-Khwarizmi) disse. Poderia citar inúmeros matemáticos brilhantes fruto da Casa da Sabedoria. Mas relembrarei apenas Jemshid Al-Kashi, que propôs a resolução de equações cúbicas por iteração, métodos trigonométricos e também pelo método conhecido hoje como «método de Horner». Este método tem uma forte influência chinesa, indicando que a matemática chinesa da dinastia Sung foi assimilada no mundo islâmico.

Para além da matemática, a medicina e a astronomia eram as ciências em destaque na Casa da Sabedoria. O famoso Muhammad Ibrahim al-Fazari redigiu a sua primeira obra de astronomia, intitulada as-Sindhind al-kabir, a partir da tradução do livro sânscrito Brahmagupta. A medicina era uma ciência nobre a tal ponto que o kahim-bashi, o médico chefe, era um dignitário com poderes na corte do califa muito semelhantes aos de um primeiro-ministro. Aliás, as bases para a revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII, à época ainda um importante centro da ciência árabe, e os seus principais mentores, o cordobês Averrois e Avicena, cujo Canon de Medicina foi traduzido para o latim no final do século XII e foi estudado nas universidades europeias até o século XVII, são ambos, para além de filósofos, médicos reconhecidos.

Assim, devemos à civilização árabe, tolerante e sem conflitos de autoridade com a ciência, a manutenção e recuperação de todo o saber de outra forma perdido em orgias de fé cristã, guardado em numerosas bibliotecas na forma de preciosos manuscritos gregos, traduções em árabe para além de livros da ciência árabe. Bibliotecas acessíveis a todos, vulgar cidadão, professor ou estudante. Cada cidade tinha a sua própria biblioteca onde todos podiam consultar os livros ou mesmo requisitá-los. A biblioteca de Córdoba, fundada em 965, constituiu a terceira biblioteca do mundo islâmico. E foi a semente para a recuperação da ciência proscrita e para o despertar da Europa das longas trevas intelectuais impostas pelo cristianismo.

Os árabes tiveram pois um papel inestimável na história da ciência, já que traduziram, fielmente e sem interpolações, os clássicos gregos (Apolónio, Arquimedes, Euclides, Pitágoras, Ptolomeu e outros). Estes clássicos estariam perdidos sem os árabes, não só devido ao encerramento da escola de Atenas, último reduto do paganismo, pelo imperador romano do Oriente Justiniano (483-565) cujo lema era «Um Estado, uma Lei, uma Igreja» e por conseguinte foi um feroz perseguidor de judeus, pagãos e hereges, como também à posterior destruição das obras consideradas heréticas de alguns destes pensadores.




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