terça-feira, setembro 19, 2006

 

Bento XVI e a modernidade II




O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa - que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» - não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.

De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.

O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».

E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano - e muitos católicos - interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.

Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.

Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.

Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica - sempre com muita oposição pela Igreja - e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.

Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional - e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» - que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!

Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!

Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.

Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.

Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..

(continua)




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