quinta-feira, dezembro 14, 2006

 

O paradoxo do mal - IV

Um pai tem um filho de 8 meses, e vê que este vai tocar na ficha eléctrica. Em pânico, impede o filho de o fazer. Isto parece absolutamente normal, e ninguém ficaria escandalizado com tal atitude.

Pelo contrário, se um pai dissesse que tinha deixado o seu filho tocar na ficha, sabendo que ele morreria dolorosamente, mas que não o tinha impedido de fazer isso por «respeitar a liberdade do filho», qualquer um consideraria monstruosa essa atitude. Nem adientaria o pai dizer que amava muito o filho e que tinha lamentado imenso a sua perda, mas que não podia desrespeitar a sua liberdade: todos achariam que uma pessoa tão desequilibrada nunca deveria ter sido pai.

O que é que nos faz achar tão legítima a atitude do pai, e tão criminosa a sua potencial omissão?

Nós consideramos que o pai, por conhecer melhor o mundo, sabe melhor do que o filho aquilo que é melhor para este último. Também sabemos que o pai tende a agir, geralmente, no interesse do filho, por causa desse laço de sangue.

Até que ponto é que este tipo de argumentos pode ser válido em relação a um adulto? É complicado...


Apesar do tanto que eu prezo a liberdade, suponho que não hesitaria em impedir o suicídio de um amigo meu, ou mesmo de um anónimo - mesmo que tivesse de invadir o seu espaço. Apesar de acreditar que cada pessoa deve ser livre para se suicidar, o risco de que uma pessoa ao pé de mim o vá fazer por estar num estado psicológico tal que não saiba bem aquilo que é melhor para si próprio é tal que eu sinto que a invasão da sua liberdade com vista a impedir o seu suicídio seria justificável do ponto de vista ético - a opção correcta.

Será assim? Muitos acreditam que o instinto de sobrevivência é tal que um ser humano dificilmente cometeria suicídio se não tivesse num estado tal que não pudesse avaliar convenientemente aquilo que é melhor para si próprio. E que isso legitimaria o impedimento de tal acto.

Se um louco quer cortar as suas próprias pernas por ter medo dos anões vermelhos, devemos deixá-lo cortá-las, ou devemos impedi-lo de o fazer? Sabemos melhor do que ele aquilo que é melhor para ele? Estaremos a agir no interesse dele?


Parece que quem valoriza a liberdade o faz por acreditar que cada pessoa sabe melhor que nenhuma outra aquilo que é melhor para si própria. A partir do momento em que um indivíduo não invade a liberdade dos outros, ninguém deve interferir, pois esse indivíduo sabe, melhor que nenhum outro, aquilo que é melhor para si próprio.

As diferentes excepções - o pai que impede o filho de tocar na ficha eléctrica; o enfermeiro que força o paciente suicida a vomitar a caixa de comprimidos contra a vontade deste; os médicos que não deixam o louco cortar suas pernas - serão justificadas na medida em que realmente não restarem dúvidas que quem invade a liberdade age no interesse do outro, e sabe melhor que este aquilo que o favorece. Que estas condições se reúnam, é algo que pode ser questionado no caso do louco e do suicida, mas dificilmente no caso do bebé de 8 meses.


Quando falo no paradoxo do mal, uma das questões que costumo colocar é a seguinte: «Como pode um Deus de amor ter criado o Inferno? Um lugar de imenso sofirmento por toda a eternidade?» Praticamente todas as respostas que me dão focam a escolha do condenado: quem vai para o Inferno, de certa forma escolheu-o. E Deus respeita essa escolha.

Existe quem não acredite no Inferno; quem acredite que, a existir, estará vazio; e quem acredite que o Inferno não é mais do que a morte simples, perdendo a possibilidade da vida eterna. Este argumento não é dirigido a nenhuma destas pessoas.


Quanto aos outros, gostaria que se detivesse um pouco sobre o problema. Se o Inferno correspondesse de facto a uma eternidade de sofrimento imenso, ninguém o escolheria em plena consciência. Qualquer que fosse a decisão que levasse alguém ao Inferno, seria uma decisão notoriamente inconsciente. Muito mais absurda do que a de qualquer louco.
Se Deus nos amasse, e fosse omnisciente, então a decisão de alguém de ir para o Inferno seria perfeitamente análoga à do bebé de 8 meses que quer tocar na ficha eléctrica - ele não tem noção das consequências do seu acto.
Se Deus não impedir tal acto cuja consequência será o Inferno, a sua atitude é tão injustificável como a do pai que respeita a liberdade do seu filho de 8 meses deixando-o morrer electrocutado. Com a diferença que morrer electrocutado é infinitamente menos grave do que passar uma eternidade a sofrer intensamente.




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