segunda-feira, janeiro 08, 2007

 

História da Carochinha

«Estava uma vez uma carochinha a varrer a sua casa quando encontrou uma moeda. Depois de a guardar, pôs-se à janela a cantar, perguntando: "Sou uma carochinha muito rica, quem se quer casar comigo?". Passou por ali um burro que disse: "Eu não. És muito pequena e não é por teres dinheiro que isso muda o teu tamanho". Mais tarde passou um rato que disse: "Carochinha, somos diferentes mas isso não interessa. Vou casar-me contigo." Marcaram o dia do casamento e prepararam tudo. No dia do casamento, antes de saírem de casa, a carochinha deixou uma panela de feijoada ao lume para os convidados. O rato ficou muito entusiasmado com o cheiro que vinha da cozinha. Depois de saírem de casa, o rato, que só pensava na comida, disse à carochinha: "Esqueci-me das luvas. Vai andando que eu vou buscá-las num instante." Assim fez a carochinha. No entanto, depois de ficar muito tempo à espera, resolveu ir procurá-lo. Foi encontrá-lo na cozinha, dentro da panela que fervia. Gritava desesperado: "Socorro! Salva-me!" Muito desapontada, a carochinha disse: "Agora vejo que és um oportunista e um egoísta. Só quiseste casar comigo por causa do meu dinheiro. Vais pagar por isso." E deixou-o morrer dentro da panela.»

Esta é uma péssima história de moral, senão pelo menos duvidosamente ambígua. Porquê? Porque ninguém merece ser abandonado à morte por causa das suas más qualidades. A vingança não é uma resposta justa às atitudes incorrectas dos outros e matar aqueles que nos magoaram é desproporcionado, violento e injusto.

É verdade que esta história pretende ensinar que não devemos julgar os outros pela sua riqueza. Será que ensina que a vingança pela morte é uma resposta justa para os gananciosos? Bem, também não deixa de ser verdade que não ensina o oposto. É por isso que não é uma boa lição. Não há histórias perfeitas mas um pai atento deveria questionar o filho sobre a atitude da carochinha para ensinar o que não está lá.

À criança que pergunta como é possível que escaravelhos se casem com roedores, falem uns com os outros e se alimentem de feijoada, responde-se naturalmente que a história é a fingir, não é real e pretende apenas ser um exemplo. Os animais podiam ser outros, podiam ser pessoas ou até mesmo objectos personificados. Isso é irrelevante e o que conta é que interpretemos as acções de indivíduos que têm o mesmo grau de entendimento e que o nosso, sejam eles quem ou o que forem.

Imagine-se agora defender a moral da história como um todo, com base no argumento de que não se pode esquecer o contexto - no fundo, são animais os seus intervenientes. Imagine-se que se argumenta que negar a moralidade desse punimento execrável é negar também o resto da moral da história, é negar a moral como um todo. Imagine-se que se argumenta que é por causa da história da carochinha que hoje em dia nós temos os valores que temos e que o oposto é falso.

Imagine-se que se pretende preservar a veracidade literal da história, dizendo que os animais, no fundo, comunicam entre si de formas ainda desconhecidas pelo homem, que há até animais que roubam objectos brilhantes e outros que mantêm laços para a vida, que as relações interespécies já foram observadas na natureza e que se sabe que os ratos comem facilmente alimentos confeccionados pelos seres humanos.

Imagine-se que se afirma que não é todo e qualquer um que pode avaliar a qualidade moral dos ensinamentos desta história sem primeiro conhecer muito bem Hans Christian Andersen, os irmãos Grimm, a história do folclore e as línguas em que são escritas as histórias populares. Imagine-se que se temem os contos populares estrangeiros com medo de perder a identidade e a moral. Imagine-se que o facto de outros contos populares partilharem preceitos comuns e chegarem a conclusões semelhantes é usado como prova de que o nosso conto deve ser levado a sério. Imagine-se que se diz que substituir a carochinha por outro animal qualquer é adulterar de forma perigosa e irracional a mensagem da história.

Fazer qualquer uma destas coisas seria desnecessário, ridículo e indefensável. Mas é o que acontece se criticarmos a história da carochinha que dá pelo nome de Bíblia.




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