sexta-feira, fevereiro 02, 2007

 

Sobre a Irracionalidade do "Não" e a sua Desconstrução (3/5)

[continuação]

Mas então urge perguntar: se a vida humana tem tantos aspectos distintos, o que nos caracteriza a nós, pessoas completamente formadas e desenvolvidas, como especiais? Por que razão a minha individualidade é distinta do meu cabelo ou das minhas outras células? Esta questão está ligada a muitas das confusões que o "Não" faz em relação à especificidade da condição humana. Alguns colocam essa especificidade numa definição cárdio-vascular, achando que o bater do coração é que nos distingue como especiais. Mas, como já vimos no exemplo do corpo ligado a uma máquina de suporte artificial de vida, ao qual foi declarada a morte cerebral, o funcionamento cárdio-vascular em condições perfeitas em nada desfaz o facto de essa pessoa estar pura e simplesmente morta, como pessoa, e que haja qualquer impedimento a que se desligue a máquina. Mais ainda, qualquer animal tem um sistema cárdio-vascular perfeitamente funcional, mas isso não nos impede de reconhecer uma imensa diferença entre um ser humano e um outro qualquer animal. Nesse caso, qualquer argumento de natureza cárdio-vascular não tem qualquer base racional e não pode ser usado, pelo menos não de uma forma séria. Outros defensores do "Não" colocam a especificidade da condição humana no património genético. Mas dois gémeos partilham o mesmo material genético e, no entanto, todos os reconhecemos como pessoas distintas. Podem ser parecidos físicamente, é certo, mas as suas individualidades nunca são postas em causa: eles pensam de maneira diferente. Eu possuo código genético misturado dos meus pais, e se calhar tenho os olhos de um e o sorriso de outro, mas a minha forma de pensar é únicamente minha. Pois é precisamente isso que nos caracteriza como seres individuais: eu não sou apenas o bater do meu coração ou o meu património genético. Acima de tudo mais eu sou os impulsos eléctricos e as reacções químicas que neste momento se desenrolam na rede neuronal que constitui o meu cérebro. Essa, e não outra, é a definição correcta de vida humana: a actividade cerebral superior. Essa, e não outra, é a definição correcta para decretar a morte de uma dado indivíduo e é também aquela que deve ser usada para decretar o surgimento de um novo indivíduo. Tudo o resto que se possa dizer não tem expressão científica concreta. E, no que diz respeito à despenalização da IVG até às 10 semanas, é muito importante que se esclareça: não existe actividade cerebral superior num feto de 10 semanas. Esta apenas começa a surgir entre as semanas 23 e 26. Isto explica também por que se escolhe um determinado número de semanas até às quais se descriminaliza a IVG: estritamente falando, quando nos referimos ao desenvolvimento fetal humano, devemos destinguir uma série de fases; até à terceira semana estamos na fase de "pré-implantação", até à décima semana estamos no período "embriónico", e só depois disso entramos no período "fetal". Daí a escolha das 10 semanas; não é um número aleatório como já ouvi alguns movimentos do "Não" sugerir.

Passemos então a um segundo argumento do "Não" e que, apesar de distinto, segue de muito próximo o argumento anterior relativo à defesa absoluta da vida humana. Este segundo argumento é o seguinte: a diferença no caso do feto é que este, na ausência de influência exterior, tem uma grande probabilidade de um dia se vir a tornar num ser de carne e osso completamente desenvolvido. Esta afirmação é verdadeira. Mas também é verdadeira para muitas das células do meu corpo, que eu poderia clonar, ou para o meu modo de vida: em vez de estar aqui a escrever, poderia estar a tentar procriar e produzir o maior número possível de futuros seres humanos. Se não o faço, é por opção pessoal, e não a vejo criminalizada. Vejamos: como acabei de descrever em cima, um feto de 10 semanas não possui a característica fundamental, de um ponto de vista racional e científico, que nos caracteriza como seres humanos, como indivíduos: actividade cerebral superior. Se não a possui, na realidade a sua eventual morte não produz uma vítima humana, no sentido que verdadeiros crimes produzem vítimas humanas. Certamente não produz mais uma vítima humana que produziria o cortar da minha mão esquerda (quantos clones meus lá morreram junto com a pobre mão?). E esse acto não é criminalizado. O que os defensores do "Não" nos querem fazer acreditar é que a IVG até às 10 semanas produz uma futura vítima humana. Este conceito, seja de um ponto de vista jurídico, ou mesmo de um ponto de vista de puro argumento, é surreal: a porta da "vítima futura" abre espaço imediato ao colapso da sociedade, ainda para mais no presente contexto de clonagem e fecundação in vitro que nos rodeia. De facto, a minha escolha de não me clonar imediatamente está a gerar um sem número de "vítimas futuras". É importante salientar que a minha clonagem não vai produzir cópias exactas da minha pessoa: vai criar seres distintos, individuais, que pensam por si mesmos, com as suas próprias vivências, que apenas partilham o meu material genético. Vai criar os meus gémeos. Em número infinito. Na "lógica" da "vítima futura", a não clonagem imediata de toda a raça humana está a criar um genocídio sem proporções! Da mesma forma, a escolha individual de cada um de nós em não ter filhos, ter um filho, ter dois filhos, etc, está a produzir como vítimas futuras todas aquelas crianças que optámos por não ter. Mas esta ideia é de todo irracional. A ideia das "vítimas futuras" criminaliza-nos a todos por não nos dedicarmos exclusivamente à multiplicação exponencial da nossa espécie. Mas uma pessoa não pode ir a tribunal nem ser presa por um crime que nunca cometeu (além do facto de que a multiplicação exponencial de qualquer espécie leva ao seu desaparecimento, o que também não seria uma decisão muito racional para se tomar). Em resumo, o argumento da "vítima futura" não tem base racional para suportar o voto no "Não", com o risco de se abrir a porta a criminalizar todos os outros aspectos, que não sejam os de concentração exclusiva na reprodução, da vida normal de uma sociedade moderna, livre e democrática, como aquela que queremos que seja a nossa. No que diz respeito à IVG, as verdadeiras vítimas não são futuras nem são fetos. São as mulheres que se vêem forçadas a recorrer à IVG clandestina, que as coloca na total ausência de condições de higiene e de segurança médica para realizar aquilo que é única e exclusivamente um acto médico. São as mulheres que acabam por ter problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada. Essas são as únicas vítimas, e acabar com a existência dessas vítimas está precisamente ao alcance do nosso voto no próximo dia 11.

[continua]




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