terça-feira, dezembro 07, 2004
Gnósticos e ateus
Vamos lá ver, eu ponho o meu problema assim:
Não sou gnóstico nem tão pouco agnóstico. Ambos os termos se reportam ao mesmo conceito de referência, contido no vocábulo a que se prendem, a palavra agnosticismo.
O agnosticismo é uma doutrina segundo a qual as questões suscitadas pela metafísica sobre a existência de Deus, origem e sentido da vida e do universo, a essência das religiões, etc., escapam e são inacessíveis à compreensão e entendimento do homem, na medida em que não cabem nem são redutíveis a qualquer comprovação de caracter científico minimamente credível.
Os seguidores desta doutrina dir-se-ão agnósticos, ao passo que os outros, isto é, os que se satisfazem com explanações esotéricas ou transcendentais da vida e daqueles problemas, são havidos por gnósticos.
Gnóstico ou agnóstico?... Eis a questão.
Mas eu direi: - Nada disso! Nem uma coisa nem outra, pois não é forçoso que seja, irrecusavelmente, ou uma ou outra a postura adoptada.Nem sequer são antónimos.
Longe vai já o tempo dos desesperados monismos redutores do mundo ao preto e branco de uma escolha única possível, oferecida ao entendimento das coisas.
A história do pensamento do homem tem mostrado como são falazes e fantasiosas todas as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos para lhe fixar balizas sistemáticas que o contenham e domem. Sempre a busca da claridade e da razão das causas, e das causas das causas, se lhe impôs como mandato irrevogável a cumprir, rasgando caminhos e lançando pontes tanto quanto a vontade e o engenho o adjuvassem. Sem obediências cegas e incondicionais. Sem vassalagens. Livremente. Como o vento nas searas ou acariciando a superfície das águas.
Assim, pois, também entre o teísta e o incréu permanece imenso e livre todo um incomensurável espaço de lavra possível, aberto e oferecido às sementes das ideias e das dúvidas, das perguntas e das respostas, à espera que seja, depois, o mesmo semeador a conseguir e recolher os frutos e os ensinamentos. E estes, sim, são antónimos, e de tal modo afastados um do outro que quase se tocam nas pontas do mesmo radicalismo.
Ora é exactamente aqui que acho uma porta para eu entrar. O caminho foi longo e ainda não terminou. Começa lá longe, nos imprecisos alvores dos meus cinco anos, ou talvez antes, sim, antes, pois aos cinco já me vestiam de cruzado e de mãos postas me enfileiravam no rebanho que o senhor abade pastoreava em dias solenes e procissões da praxe. Depois veio a doutrina toda, em catadupas, que as zeladoras da Igreja, da roda do senhor abade, nos obrigaram a decorar, a mim e aos outros da mesma catequese, em monótonas cantilenas de tabuada ou como das linhas dos caminhos de ferro, com os nomes das estações, apeadeiros, ramais e tudo, ou das serras e dos rios com seus afluentes, d'àquem e d'além mar em África, tudo isso na ponta da língua, sem falhar nada.
Cedo, porém, começou a reflexão. A Branca de Neve, o Pai Natal, o menino Jesus, o Pai Gepeto e o Pinóquio, as Fadas e as Bruxas, os Gigantes, os anões, o lobo mau, as almas do outro mundo e os mortos que, mesmo fantasmas e tudo, falavam e faziam barulhos, o Céu e o Inferno, Deus e o Diabo, e os anjos, e os milagres e Deus e os arcanjos a ajudar nas guerras ora uns ora outros e a não fazerem peva nas grandes desgraças do mundo, quais fomes, pestes, mortes horríveis, crimes e outros males, e tudo isso foi entrando pelo juizo dentro ao mesmo tempo que também o juízo ia entrando pelo tempo fora, a magicar desconfianças, a misturar fantasias, a fazer deduções, a pôr hipóteses a que os padrecos interrogados respondiam mal, e depois ainda, o Renan e a seguir o Drama de Jean Barois... e os caminhos do juízo e do entendimento a abrirem-se cada vez mais...Élááá-ôo! Por fim uma leitura já mais séria da vida, e da vida dos outros, e também dos santos, e dos profetas, e dos textos inventados por doentes esquizofrénicos, trazidos às multidões na voz de profetas malucos, poetas desvairados, sibilas, pitonisas e outras cassandras do marketing das divindades várias, abundantes, sucessivas, renováveis e reencarnáveis umas nas outras, interminavelmente. Já mais p'ra agora, novamente os livros, de apuramento e lavagem das leituras anteriores, e outras de grau mais limpo, com filósofos de permeio a debaterem-se exaustos e inconclusivos, a medirem e a confrontarem certezas contaminadas por claridades súbitas, dúvidas insidiosas, suspeitas iniludíveis, mas, concomitantemente, também uma compreensão nova, mais serena e talvez lúcida.
Em suma: - dou comigo ateu retinto, assumido, desgostoso e impenitente, a olhar de lado e de viés longínquas lembranças das penas perdidas, daquelas asas brancas que um dia um anjo me deu.... «Pena a pena me caíram/ Nunca mais voei ao Céu...».
Irremediavelmente ateu, deixou-me a «teotomia» (ou «deotomia»?...) sofrida em estado semelhante ao do amputado que por algum tempo ainda vai continuar a sentir em si a dor-sombra do membro fantasma que da ablação consumada lhe ficou.
Albertino Almeida
Não sou gnóstico nem tão pouco agnóstico. Ambos os termos se reportam ao mesmo conceito de referência, contido no vocábulo a que se prendem, a palavra agnosticismo.
O agnosticismo é uma doutrina segundo a qual as questões suscitadas pela metafísica sobre a existência de Deus, origem e sentido da vida e do universo, a essência das religiões, etc., escapam e são inacessíveis à compreensão e entendimento do homem, na medida em que não cabem nem são redutíveis a qualquer comprovação de caracter científico minimamente credível.
Os seguidores desta doutrina dir-se-ão agnósticos, ao passo que os outros, isto é, os que se satisfazem com explanações esotéricas ou transcendentais da vida e daqueles problemas, são havidos por gnósticos.
Gnóstico ou agnóstico?... Eis a questão.
Mas eu direi: - Nada disso! Nem uma coisa nem outra, pois não é forçoso que seja, irrecusavelmente, ou uma ou outra a postura adoptada.Nem sequer são antónimos.
Longe vai já o tempo dos desesperados monismos redutores do mundo ao preto e branco de uma escolha única possível, oferecida ao entendimento das coisas.
A história do pensamento do homem tem mostrado como são falazes e fantasiosas todas as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos para lhe fixar balizas sistemáticas que o contenham e domem. Sempre a busca da claridade e da razão das causas, e das causas das causas, se lhe impôs como mandato irrevogável a cumprir, rasgando caminhos e lançando pontes tanto quanto a vontade e o engenho o adjuvassem. Sem obediências cegas e incondicionais. Sem vassalagens. Livremente. Como o vento nas searas ou acariciando a superfície das águas.
Assim, pois, também entre o teísta e o incréu permanece imenso e livre todo um incomensurável espaço de lavra possível, aberto e oferecido às sementes das ideias e das dúvidas, das perguntas e das respostas, à espera que seja, depois, o mesmo semeador a conseguir e recolher os frutos e os ensinamentos. E estes, sim, são antónimos, e de tal modo afastados um do outro que quase se tocam nas pontas do mesmo radicalismo.
Ora é exactamente aqui que acho uma porta para eu entrar. O caminho foi longo e ainda não terminou. Começa lá longe, nos imprecisos alvores dos meus cinco anos, ou talvez antes, sim, antes, pois aos cinco já me vestiam de cruzado e de mãos postas me enfileiravam no rebanho que o senhor abade pastoreava em dias solenes e procissões da praxe. Depois veio a doutrina toda, em catadupas, que as zeladoras da Igreja, da roda do senhor abade, nos obrigaram a decorar, a mim e aos outros da mesma catequese, em monótonas cantilenas de tabuada ou como das linhas dos caminhos de ferro, com os nomes das estações, apeadeiros, ramais e tudo, ou das serras e dos rios com seus afluentes, d'àquem e d'além mar em África, tudo isso na ponta da língua, sem falhar nada.
Cedo, porém, começou a reflexão. A Branca de Neve, o Pai Natal, o menino Jesus, o Pai Gepeto e o Pinóquio, as Fadas e as Bruxas, os Gigantes, os anões, o lobo mau, as almas do outro mundo e os mortos que, mesmo fantasmas e tudo, falavam e faziam barulhos, o Céu e o Inferno, Deus e o Diabo, e os anjos, e os milagres e Deus e os arcanjos a ajudar nas guerras ora uns ora outros e a não fazerem peva nas grandes desgraças do mundo, quais fomes, pestes, mortes horríveis, crimes e outros males, e tudo isso foi entrando pelo juizo dentro ao mesmo tempo que também o juízo ia entrando pelo tempo fora, a magicar desconfianças, a misturar fantasias, a fazer deduções, a pôr hipóteses a que os padrecos interrogados respondiam mal, e depois ainda, o Renan e a seguir o Drama de Jean Barois... e os caminhos do juízo e do entendimento a abrirem-se cada vez mais...Élááá-ôo! Por fim uma leitura já mais séria da vida, e da vida dos outros, e também dos santos, e dos profetas, e dos textos inventados por doentes esquizofrénicos, trazidos às multidões na voz de profetas malucos, poetas desvairados, sibilas, pitonisas e outras cassandras do marketing das divindades várias, abundantes, sucessivas, renováveis e reencarnáveis umas nas outras, interminavelmente. Já mais p'ra agora, novamente os livros, de apuramento e lavagem das leituras anteriores, e outras de grau mais limpo, com filósofos de permeio a debaterem-se exaustos e inconclusivos, a medirem e a confrontarem certezas contaminadas por claridades súbitas, dúvidas insidiosas, suspeitas iniludíveis, mas, concomitantemente, também uma compreensão nova, mais serena e talvez lúcida.
Em suma: - dou comigo ateu retinto, assumido, desgostoso e impenitente, a olhar de lado e de viés longínquas lembranças das penas perdidas, daquelas asas brancas que um dia um anjo me deu.... «Pena a pena me caíram/ Nunca mais voei ao Céu...».
Irremediavelmente ateu, deixou-me a «teotomia» (ou «deotomia»?...) sofrida em estado semelhante ao do amputado que por algum tempo ainda vai continuar a sentir em si a dor-sombra do membro fantasma que da ablação consumada lhe ficou.
Albertino Almeida
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