domingo, novembro 20, 2005

 

De Defectu Oraculorum ou Do esgotamento dos oráculos

La verità é sola figliola del tempo (A verdade é filha do tempo) Leonardo da Vinci

Thomas More, (1478-1535) o escritor e estadista inglês canonizado em 1935 como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento (católico, claro) e patrono dos políticos, foi lorde chanceler, o mais alto posto judicial em Inglaterra, de 1529 a 1532. More foi destituído do cargo de chanceler por ter discordado de Henrique VIII sobre a separação da Igreja inglesa da autoridade do Papa e foi preso e decapitado em 1535 por recusar-se a aceitar a intenção de Henrique VIII de divorciar-se da rainha.

A filosofia de More encontra-se exposta com maior clareza no seu livro Utopia (escrito em 1516), uma apresentação de uma sociedade ideal (segundo os padrões da época, claro), com tónica na existência de justiça e igualdade para (quase) todos os cidadãos. Igualmente inovador para a época é o facto de More, um católico convicto que não seguiu os seus princípios expostos na Utopia, ter preconizado utopicamente a tolerância religiosa. Assim, os habitantes da Utopia professam diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença num único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas porque, como não poderia deixar de ser, não há uma religião oficial do Estado, condição necessária (mas não suficiente) para o estabelecimento de tolerância religiosa.

O que a maioria dos nossos leitores não saberá é que a Utopia de More tem uma influência marcada do filósofo proscrito pelo cristianismo, Epicurus, redescoberto na Renascença. A redescoberta de Epicurus, possível graças ao texto De rerum Natura de Titus Lucretius Carus, propiciou o desenvolvimento da ética, do direito e da ciência tal como os conhecemos, esta última especialmente após a «cristianização» do atomismo epicurista por Pierre Gassendi (1592-1655) (enfim, no século XVIII os jesuítas nacionais que detinham o monopólio do ensino proibiram o ensino das teorias blasfemas de Gassendi, a par das de Descartes e Newton).

«O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objectivo de não se prejudicar mutuamente» (Epicurus in Máximas Fundamentais), ou seja, esta máxima de Epicurus, transmitida por Diógenes Laercio, afirma o carácter relativo da justiça, dependente das convenções sociais e, por isso mesmo, essencialmente mutável. O carácter convencional que o epicurismo atribui à justiça e às leis positivas, muito mais que um cepticismo relativista, foi o percursor da teoria do contrato social. Este é o aspecto principal do carácter jurídico do epicurismo que o situa assim entre os primeiros contratualistas e, talvez, os positivistas fenomenólogos do direito.

Em Thomas More, especialmente na Utopia, encontramos assim o retorno do epicurismo (e também da filosofia estóica) no sentido ético e do direito que não no científico. More cristianizou Epicurus, ignorou o seu ateísmo temperando a ética e o direito epicuristas com contribuições platónicas - Platão era o seu filósofo favorito, há muito cristianizado por Agostinho de Hipona. De facto, a rejeição de qualquer divindade, ou pelo menos da sua intervenção no mundo sensível, é a pedra basilar do epicurismo que explica o mundo sem transcentalidades, a partir dos átomos que o integram, sujeitos a leis naturais.

A morte nada significa para os epicuristas «A morte não é nada para nós, pois o que se dissolve está privado de sensibilidade e o que está privado de sensibilidade não é nada para nós.» (Epicurus, Máximas Fundamentais). Também por isso Epicurus foi proscrito e vilipendiado pela Igreja Católica a tal ponto que ainda hoje epicurista é um termo pejorativo, um desregramento de costumes, como podemos encontrar em alguns dicionários. Na realidade, no contexto da moral epicurista a virtude não é um fim, mas o meio de o atingir, sendo que o fim é a felicidade humana e a justiça, uma virtude, é um instrumento indispensável na obtenção dessa felicidade. Assim, o direito deve prescrever as acções que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas, e proibir aquelas que são prejudiciais ao bem estar colectivo.




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