quarta-feira, novembro 02, 2005

 

A próstata do Marquês

Quando visito Lisboa tento sempre passar pela belíssima baixa pombalina. E quando acho que me dará jeito um mapa da cidade, vou ao Posto de Turismo que fica na Praça do Comércio buscar um, juntando a utilidade do mapa à agradável visão que aquela praça me oferece.

Mas logo o topónimo daquela praça é interessante: a insistência com que os habitantes locais chamam Terreiro do Paço àquela praça é, antes de mais, curiosa.

De facto, até 1755 aquele espaço chamava-se assim porque era ali que a família real tinha o seu palácio, o Paço, o que lhes proporcionava uma magnífica visão diária sobre a sua armada real atracada no porto ali mesmo em frente.

Após o terramoto, Marquês do Pombal empreendeu uma magnífica reconstrução da baixa da cidade, trocando as apertadas ruelas medievais onde tanta gente morreu soterrada, por uma ampla malha de ruas largas ao mais recente estilo europeu.

À renovada praça, com uma grande estátua real equestre, decidiu chamar-lhe «Praça do Comércio», para uma ideia de regresso à normalidade mercantil da cidade, vibrante e fervilhante antes daquele primeiro de Novembro de 1755.

Aqueles quarteirões da baixa pombalina são hoje uma agradável zona pedonal comercial. E contudo, passados duzentos e cinquenta anos depois do final da existência daquela praça com o nome Terreiro do Paço, como é possível que haja tantos lisboetas que insistem naquele nome?

Em vinte de Dezembro de 2001 a União Europeia introduz a nova moeda única. Dois meses depois o Escudo deixa de ter curso legal. E apesar disso ainda encontro amigos e estranhos que insistem em apreciar os itens que mencionam na moeda antiga. O hábito do raciocínio em Escudos é a sua justificação.

Mas eu pergunto: então que desculpa para o hábito do Terreiro do Paço? Certamente ninguém que eu conheço passou parte da sua vida chamando-lhe assim antes do Marquês lhe mudar o nome.

Das várias ruas da malha pombalina, a mais conhecida é a Rua Augusta. Isto porque é aquela que deixa ver um dos lados do Arco da Praça do Comércio, também conhecido por Arco Augusto.

E por isso aquela rua é, de longe, a mais usada pelas estações de televisão para ilustrar todo o tipo de reportagens. Se o tema da notícia é a perda do poder de compra dos portugueses, lá vai um operador de câmara tirar umas imagens de pessoas anónimas que passeiam alheias à câmara de filmar na Rua Augusta. Se o tema é a alteração da Lei do Arrendamento, lá vai um operador de câmara tirar umas imagens de pessoas que passeiam na Rua Augusta. Se o tema é a elevada abstenção prevista para as próximas eleições, lá vai um operador de câmara tirar umas imagens de pessoas que passeiam na Rua Augusta. Se o tema é a subida da taxa de juro, lá vai um operador de câmara tirar umas imagens de pessoas que passeiam na Rua Augusta. Se o tema é o cancro da próstata, lá vai um operador de câmara tirar umas imagens de pessoas que passeiam na Rua Augusta.

O mais engraçado é que o Arco Augusto só foi terminado muitos anos depois da sua construção. Aquando da data do terramoto, Portugal era visto pelo resto da Europa com aquele país extremamente próspero mas profundamente religioso. A monarquia absoluta serviu o catolicismo mais fanático, perpetuando os Autos-de-Fé quando o resto da Europa os via como as atrocidades que eram.

E logo no Dia de Todos os Santos, com as igrejas católicas de Lisboa cheias durante o serviço religioso, deu-se o desastre.

O fenómeno foi um causador de grande reflexão filosófica e religiosa, não só em Portugal como em toda a Europa.

Como poderia um Deus castigar um povo tão piedoso? O seu mais devoto povo? Que pecados para lá do perdão teria cometido aquele povo, ou a sua realeza? Seria o protestantismo a religião verdadeira? Existiria, sequer, um Deus?

Marquês do Pombal fez circular panfletos e sermões que defendiam que o terramoto não tinha causas divinas, mas causas estritamente naturais.

Enquanto isso a Europa comovia-se com as ponderações causadas pela tragédia. Para as vítimas de Lisboa, Voltaire compôs uma das suas mais elegíacas composições: Poème sur le désastre de Lisbonne, e voltaria depois a abordar Lisboa no romance «Cândido».

Só que quando os sentimentos religiosos pareciam esfriar, eis que D. Maria I assume a coroa, tomando a missão de reparar as ofensas do reino a Deus. Marquês do Pombal pede a escusa do seu cargo. Num repente a nova raínha desvia todos os fundos de reconstrução da baixa, ainda sem iluminação pública e saneamento, para escândalo dos portugueses e dos europeus, e entrega-os para a construção do Convento das Carmelitas Descalças. Em 1792, é afastada da governação por doença mental.

Mas eventualmente o Arco Augusto é terminado. E apesar disto tudo, tudo isto para dizer que sempre que passo pela Praça, não deixo de olhar para cima para as suas inscrições

VIRTUTIBUS
MARIORUM

VT. SIT. OMNIBUS DOCUMENTO P. P. D.


Que, traduzido para português, quer dizer:

À EXCELÊNCIA
DOS ANTEPASSADOS

QUE SEJA EXEMPLO PARA TODA A GENTE


Publicado originalmente a 2005/05/21 no Ensaio Geral




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