sexta-feira, maio 26, 2006

 

Relativismo moral - I

Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte
Tomás de Aquino, Suma Teológica II/II 11, 3c

Desde o início do seu pontificado como Papa, o discurso de Ratzinger tem sido pautado pela denúncia daquilo a que chama «ditadura do relativismo», ou seja, supremacia da tolerância, da razão e ciência em detrimento do obscurantismo e totalitarismo da fé. Ratzinger que se lamentava não ser «bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetida como mágica: 'Paz, justiça, respeito pela natureza'» e que praticamente declarou guerra à modernidade, liberalismo (entendido como a democracia moderna) e liberdade de pensamento e consciência na homilia que deu início ao conclave que o elegeu.

O discurso do Papa é ecoado por algumas das suas mais beatas correias de transmissão, que com um ar de pseudo-superioridade moral rematam qualquer discussão para a qual não têm argumentos com a estafada e falsa afirmação de que «sim, tudo isso é muito bonito mas eu tenho valores, absolutos e universais, assentes na verdade revelada por nosso senhor. Tu não passas de uma relativista moral sem nada em que apoiares as tuas posições». Lembro-me por exemplo de um momento na Sic Notícias em que Maria José Nogueira Pinto disparou esta afirmação contra o seu oponente num debate sobre o aborto.

Na realidade, muitos dos apregoados «valores morais e verdades absolutas» da ICAR são-no muito recentemente. Algumas verdades absolutas do passado da ICAR foram desmistificadas (com grande oposição e muitas fogueiras inquisitoriais pelo meio) pela ciência, como o geocentrismo ou o criacionismo bíblico, mas também alguns «valores morais universais e absolutos» foram, com grande resistência, abandonados pela Igreja de Roma.

O anti-semitismo, a defesa da escravatura, a perseguição e assassínio de bruxos, hereges e apóstatas, a defesa do uso de tortura, a legitimidade das guerras «santas», a negação dos direitos dos homens, a defesa de regimes de «direito divino» e a condenação da democracia, a condenação da liberdade de expressão, a luta contra a emancipação da mulher, enfim, uma série de «erros» morais por alguns dos quais, difíceis de apagar dos livros de História, João Paulo II fez me(i)a-culpa.

Mas todas estas ex-verdades absolutas católicas só são reconhecidas hoje como abominações morais após muita resistência da Igreja, muitos discursos e encíclicas condenando os erros da modernidade, em tudo menos no assunto idênticas às prelecções contra a «ditadura do relativismo» do actual Papa. Que autoridade e credibilidade para falar em «valores morais universais e absolutos» tem uma Igreja que tantas vezes impôs «valores morais universais e absolutos» que hoje repudiamos? Que perseguiu, torturou e muitas vezes queimou como hereges os que se atreveram a questioná-los?

Que (i)moralidade existe então nas posições actuais da Igreja?




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