quarta-feira, janeiro 10, 2007

 

O cardiocentrismo do não


Na falta de argumentos, os cruzados pelo NÃO no referendo de 11 de Fevereiro próximo apostam numa dramatização demagógica e falaciosa da respectiva campanha, dramatização de que o primeiro cartaz, produzido em quantidades massivas e afixado profusamente pelo menos em Lisboa, é um exemplo acabado.

O cartaz, que interroga em letras garrafais «Abortar por opção quando já bate um coração?» é uma ilustração perfeita de um apelo à emoção primário que remete subliminarmente para o paradigma mariano da mulher e para as arcaicas e anacrónicas concepções cardiocêntricas do homem que se encontram na mitologia cristã.

Isto é, o cartaz que suplica uma resposta negativa do eleitorado, subentende que as mulheres são sub-humanos incapazes de opções morais e como tal deve ser a nossa sociedade (ainda) patriarcal, mais concretamente a classe médica, a única detentora da capacidade de decisão sobre a interrupção de uma gravidez. Ou seja, subentende-se do cartaz que o «crime» não é o aborto mas sim permitir que uma leviana e fútil mulher opte por ele!

Por outro lado, o cartaz remete a uma visão cardiocentrista do homem, completamente obsoleta como tive ocasião de relembrar em Outubro último:

Esta visão cardiocentrista induzida por superstições míticas que podemos fazer remontar aos antigos egpcíos é mantida no cristianismo e persiste até ao século XVII, não obstante os atomistas, nomeadamente Demócrito - que classificou o cérebro como a «cidadela do corpo», o «guardião do pensamento e da inteligência» - e outros pensadores como Hipócrates, Herófilo ou Galeno, terem colocado o cérebro como responsável pelo ser do homem.

Na realidade, é no cérebro e não no coração - como pretende toda a mitologia cristã, que na linha aristotélica privilegia a tese «cardiocentrista», aquela que confere ao coração o monopólio da razão e das paixões - que devemos procurar a explicação do «ser» do homem, em que este ser inclui o «ser» social e moral, que evolui com a encefalização do homem.

Isto é, o batimento do coração nem sequer traça a fronteira entre a vida e morte. De facto, a morte clínica é decretada actualmente pela ausência de actividade cerebral não pela morte do sistema cardio-vascular. É a morte cerebral que indica que uma pessoa morreu, não a «morte» cardíaca. Aliás, o coração vivo de um ser biológico que já não consideramos uma pessoa pode ser transplantado sem alterar a individualidade de quem o recebe, sem lhe alterar o «ser» que nos distingue dos restantes animais.

Se não é no coração que encontramos o ser do Homem, se é a vitalidade do sistema nervoso central que delimita a fronteira entre vida e morte de uma pessoa, porque razão os paladinos de óvulos e espermatozóides e cruzados contra a possibilidade de opção pela mulher, que insistem em não ter motivação religiosa a sua posição pró-prisão, recorrem à mitologia cristã e não à ciência no primeiro cartaz que debitam?

Não é o batimento do coração indicador que a ciência utilize para decretar a morte de uma pessoa. Porque razão consideram os pró-prisão que os parâmetros consensualmente aceites para delimitar o fim da vida de uma pessoa não são aplicáveis para delimitar o seu início?





<< Home

Google
 
Web www.ateismo.net


As opiniões expressas no Diário Ateísta são estritamente individuais e da exclusiva responsabilidade dos seus autores, e não representam necessariamente a generalidade dos ateus. Os artigos publicados estão sujeitos aos estatutos editoriais.
As hiperligações para sítios externos não constituem uma recomendação implícita. O ateismo.net não é responsável nem subscreve necessariamente, no todo ou em parte, a informação e opinião expressa nesses sítios web.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?